Por Luís Fernando Veríssimo
Houve uma grande comoção em casa com o primeiro telefonema da Duda, à
pagar, de Paris. O primeiro telefonema desde que ela embarcara, mochila
nas costas (a Duda, que em casa não levantava nem a sua roupa do chão!),
na Varig, contra a vontade do pai e da mãe. Você nunca saiu de casa
sozinha, minha filha! Você não sabe uma palavra de francês! Vou e
pronto. E fora. E agora, depois de semanas de aflição, de "onde anda
essa menina?", de "você não devia ter deixado, Eurico!", vinha o
primeiro sinal de vida. Da Duda, de Paris.
- Minha filha...
- Não posso falar muito, mãe. Como é que se faz café?
- O quê?
- Café, café. Como é que se faz?
-Não sei, minha filha. Com água, com... Mas onde é que você está, Duda?
- Estou trabalhando de "au pair" num apartamento. Ih, não posso falar mais. Eles estão chegando. Depois eu ligo. Tchau!
O pai quis saber detalhes. Onde ela estava morando?
- Falou alguma coisa sobre "opér".
- Deve ser "ópera". O francês dela não melhorou...
Dias
depois, outra ligação. Apressada como a primeira. A Duda queria saber
como se mudava fralda. Por um momento, a mãe teve um pensamento louco. A
Duda teve um filho de um francês! Não, que bobagem, não dava tempo. Por
que você quer saber, minha filha?
- Rápido, mãe. A criança tá borrada!
Ninguém em casa podia imaginar a Duda trocando fraldas. Ela, que tinha nojo quando o irmão menor espirrava.
- Pobre criança... - comentou o pai.
Finalmente,
um telefonema sem pressa da Duda. Os patrões tinham saído, o cagão
estava dormindo, ela podia contar o que estava lhe acontecendo. "Au
pair" era empregada, faz-tudo. E ela fazia tudo na casa. A princípio
tivera alguma dificuldade com os aparelhos. Nunca notara antes, por
exemplo, que o aspirador de pó precisava ser ligado numa tomada. Mas
agora estava uma opér "formidable". E Duda enfatizara a pronúncia
francesa. "Formida-ble". Os patrões a adoravam. E ela tinha prometido
que na semana seguinte prepararia uma autêntica feijoada brasileira para
eles e alguns amigos.
- Mas, Duda, você sabe fazer feijoada?
- Era sobre isso que eu queria falar com você, mãe. Pra começar, como é que se faz arroz?
A mãe mal pôde esperar o telefonema que a Duda lhe prometera, no dia seguinte ao da feijoada.
- Como foi, minha filha. Conta!
- Formidable! Um sucesso. Para o próximo jantar, vou preparar aquela sua moqueca.
- Pegue o peixe... - começou a mãe, animadíssima.
A
moqueca também foi um sucesso. Duda contou que uma das amigas da sua
patroa fora atrás dela, na cozinha, e cochichara uma proposta no seu
ouvido: o dobro do que ela ganhava ali para ser opér na sua casa. Pelo
menos fora isso que ela entendera. Mas Duda não pretendia deixar seus
patrões. Eles eram uns amores. Iam ajudá-la a regularizar a sua situação
na França. Daquele jeito, disse Duda a sua mãe, ela tão cedo não
voltava ao Brasil.
É preciso compreender, portanto, o que se passava
no coração da mãe quando a Duda telefonou para saber como era a sua
receita de suflê de chuchu. Quase não usavam o chuchu na França, e a
Duda dissera a seus patrões que suflê de chuchu era um prato típico
brasileiro e sua receita era passada de geração a geração na floresta
onde o chuchu, inclusive, era considerado afrodisíaco. Coração de mãe é
um pouco como as Caraíbas. Ventos se cruzam, correntes se chocam, é uma
área de tumultos naturais. A própria dona daquele coração não saberia
descrever os vários impulsos que o percorreram no segundo que precedeu
sua decisão de dar à filha a receita errada, a receita de um fracasso.
De um lado o desejo de que a filha fizesse bonito e também - por que não
admitir? -uma certa curiosidade com a repercussão do seu suflê de
chuchu na terra, afinal, dos suflês, do outro o medo de que a filha
nunca mais voltasse, que a Duda se consagrasse como a melhor opér da
Europa e não voltasse nunca mais. Todo o destino num suflê. A mãe deu a
receita errada. Com o coração apertado. Proporções grotescamente
deformadas. A receita de uma bomba.
Passaram-se dias, semanas,
sem uma notícia da Duda. A mãe imaginando o pior. Casais intoxicados.
Jantar em Paris acaba no hospital. Brasileira presa. Prato selvagem
enluta famílias, receita infernal atribuída à mãe de trabalhadora
clandestina, Interpol mobilizada. Ou imaginando a chegada de Duda em
casa, desiludida com sua aventura parisiense, sua carreira de opér
encerrada sem glória, mas pronta para tentar outra vez o vestibular.
O que veio foi outro telefonema da Duda, um mês depois. Apressada de novo. No fundo, o som de bongôs e maracas.
- Mãe, pergunta pró pai como é a letra de Cubanacã! -Minha filha...
- Pergunta, é do tempo dele. Rápido que eu preciso pro meu número.
Também
houve um certo conflito no coração do pai, quando ouviu a pergunta.
Arrá, ela sempre fizera pouco do seu gosto musical e agora precisava
dele. Mas o segundo impulso venceu:
- Diz pra essa menina voltar pra casa. JÁ!